Allan Kardec, o respeitável professor Donizard Rivail, já havia
organizado extensa porção das páginas reveladoras que constituem O Livro
dos Espíritos.
Devotado observador, aliara inteligência e carinho, método e bom
senso na formação da primeira obra que lançaria os fundamentos da
Doutrina Espírita.
Não desconhecia que a sobrevivência da alma era tema empolgante no
século. Entretanto, apontamentos e experimentações, em torno do assunto,
alinhavam-se desordenados e nebulosos. Os fenômenos do intercâmbio,
pareciam ameaçados pela hipertrofia de espetaculosidade.
Saindo de humilde vilarejo da América do Norte, a comunicação com os
Espíritos desencarnados atingira os mais cultos ambientes da Europa,
originando infrutífero sensacionalismo. Era necessário surgisse alguém
com bastante coragem para extrair do labirinto a linha básica da
filosofia consoladora que os fatos consubstanciavam, irrefutáveis e
abundantes.
Advertido por amigos da Espiritualidade de que a ele se atribuía, em
nome do Senhor, a elevada missão de codificar os princípios espíritas,
destinados à mais ampla reforma religiosa, pusera mãos ao trabalho, sem
cogitar de sacrifícios. E adotando o sistema de perguntas e respostas,
conseguiria vasta colheita de esclarecimento e de luz.
Guardava consigo preciosas anotações acerca da constituição geral do
Universo, surpreendente informes sobre a vida de além-túmulo e belas
asserções definindo as leis morais que orientam a Humanidade.
O material esparso equivalia quase que praticamente ao livro pronto.
Contudo, era preciso estabelecer um ponto de partida. O primeiro
compêndio do Espiritismo, endereçado ao presente ao futuro, não podia
prescindir de sólidos alicerces.
E, debruçado sobre a mesa de trabalho, em nevada noite do inverno de
1856, o Codificador interrogava a si mesmo: – Por onde começar? Pelas
conclusões científicas ou pelas indagações filosóficas? Seria justo
desligar a Doutrina, que vinha consagrar o antigo ensinamento do Cristo,
de todo e qualquer apoio da fé, na construção das bases que lhe diziam
respeito?
O conhecimento humano!… – pensava ele – não se modificava o
conhecimento humano todos os dias?… As ilações filosófico-científicas
não eram as mesmas em todos os séculos… E valeria escravizar o
Espiritismo à exaltação do cérebro, em prejuízo do sentimento?
Atormentado, via mentalmente os homens de seu tempo e de sua pátria extraviados na sombra do materialismo demolidor…
A grande revolução que pretendera entronizar os direitos do Homem
ainda estava presente no ar que ele respirava. Desde 2 de Dezembro de
1851, o governo de Luis Napoleão, que retomava as linhas do Império,
permitia prisões em massa, com deliberada perseguição aos elementos de
todas as classes sociais que não aplaudissem os planos do poder. Muitos
membros da Assembléia haviam sofrido banimento e mais de vinte mil
franceses jaziam deportados, muitos deles sem qualquer razão justa.
Homens dignos eram enviados a regiões inóspitas, quando não eram
confiados, no cárcere, à morte lenta.
O pensamento do missionário foi mais longe… Recordou-se de Voltaire e
Rousseau, admiráveis condutores da inteligência, mas também precursores
da ironia e do terror. Lembrou Condorcet, o filósofo e matemático,
envenenando-se para escapar à guilhotina, e Marat, o médico e
publicista, assassinado num banho de sangue, quando instigava a matança e
a destruição.
Valeria a cultura da inteligência, só por si, quando, a par dos bens
que espalhava, podia desmandar-se em sarcasmo arrasador e loucura
furiosa?
Com o respeito que ele consagrava incondicionalmente à Ciência e à
Filosofia, Kardec orou com todo o coração, suplicando a inspiração do
Alto. Erguia-se-lhe a prece comovente, quando raios de amor lhe
envolveram o espírito inquieto e ele ouviu, na acústica da própria alma,
vigoroso apelo íntimo: – “Não menosprezes a fé!… Não comeces a obra
redentora sem a Bênção Divina!…”.
E o Codificador, nimbado de luz, com a emotividade jubilosa de quem
por fim encontrara solução o terrível problema, longamente sofrido,
consagrou o primeiro capítulo de O Livro dos espíritos à existência de
Deus.
pelo Espírito Irmão X – Do livro: “Doutrina Escola” – psicografia de Francisco Cândido Xavier – Autores Diversos.
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