quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Psiquiatria - Transe e Possessão - Parte 4


O Dom de Falar Línguas

Com freqüência e constatando-se até em programas da televisão, vemos fiéis tomados pelo Espírito Santo, com grande júbilo e êxtase, conversam entre si falando línguas estranhas.

Para os Pentecostais, como vimos, trata-se do Batismo com Espírito Santo, ou seja, do exercício de um ou mais dons extraordinários, como por exemplo, o dom de falar em línguas estranhas, etc. Na psiquiatria a emissão de sons desconexos leva o nome de glossolalia. E de fato, essa questão pode ser vinculada a uma problemática fundamental na constituição do sujeito humano; sua relação com a linguagem.

A aquisição da linguagem no ser humano não pode ser considerada um mero aprendizado de uma comunicação para uso imediato como ocorre com outros animais. A aquisição da linguagem é o ingresso no mundo simbólico, fato que caracteriza essencialmente o ser humano, que o distingue dos outros animais e funda sua cultura, definindo assim o limite da espécie.

Segundo Sérgio Telles (O Dom de Falar Línguas) , ao nascer a criança é mergulhada no universo lingüístico dos pais, num encontro definitivo, irreversível. Uma vez dentro da língua materna, a criança dela não mais poderá sair. A mãe fala e, através de sua linguagem introduz a criança no mundo simbólico.

No início da vida as palavras e o discurso soarão sempre à criança como uma língua estrangeira, imposta duramente e indispensável ao estabelecimento das bases de sua sobrevivência e de sua identidade como sujeito humano. Quem fala representa, à criança, quem manda, entende e domina, embora não se entenda ainda e perfeitamente o que fala.

Aos poucos a criança que ainda não fala mas ouve, absorve, apreende e adquire a fala dos adultos. Estes sons lhe parecem absolutamente desconhecidos, misteriosos, surpreendentes, enigmáticos e fascinantes (idem Telles). E esse fascínio por línguas estranhas acaba persistindo, tal como uma cicatriz indelével, ao longo da vida das pessoas. Nas culturas mais acanhadas o sotaque e a língua estranha adquire até uma conotação de autoridade e sedução.

Podemos supor que ao falarem “línguas”, as pessoas em transe, possuídas ou, como se diz culturalmente, dotadas desse estado, estariam psicologicamente regredidas e identificadas com a mãe, com os adultos ou com poderosos portadores da linguagem, aqueles que representavam ser os superiores na infância.

O episódio pode simbolizar aqueles momentos fundamentais do psiquismo, onde a pessoa ouvia fascinada a língua “estrangeira”, incompreensível e misteriosa, eficaz e capaz de resolver problemas, de oferecer soluções. Pode significar o encantamento da criança que ainda não fala ao se deparar com os sons do discurso dos adultos poderosos.

Quem vivenciou outrora ou ainda presencia alguma liturgia católica conduzida em latim experimenta sentimentos estranhos e poderosos. As expressões dessa língua estranha persistem ruminantemente na memória como uma espécie de patrimônio arqueológico.

Ao falar “línguas” a pessoa em transe, possuída, ou melhor, o inconsciente dessa pessoa faz com que a palavra transcenda sua condição de signo comunicativo para representar o simbólico, para manifestar e expressar sua identificação com o superior poderoso.

(Continua...)
para referir:
Ballone GJ, Ortolani, IV  - Transe e Possessão - in. PsiqWeb, Internet, disponível em www.psiqweb.med.br, revisto em 2005.

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