quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Psiquiatria - Transe e Possessão - Parte 8

 
Pensamento Mágico
 
O pensamento mágico quando patológico, é também uma crença patológica. Havendo saúde mental, os estímulos para que se desenvolva o raciocínio devem provir de fontes externas e internas. Mas o pensamento não é guiado apenas por considerações estritamente atreladas à realidade, ele também flui motivado por estímulos interiores, abstratos e afetivos ou até instintivos. A criação humana, por exemplo, ultrapassa muitas vezes a realidade dos fatos, refletindo estados interiores variados e de enorme valor para a construção de nosso patrimônio cultural.

Voltar-se para o mundo interno significa que o pensamento se manifesta sob a forma de DEVANEIOS - uma espécie de servidão das idéias às nossas necessidades mais íntimas, aos nossos afetos e paixões. Enquanto há saúde mental, entretanto, nossos devaneios são sempre voluntários e reversíveis; eles devem ser nossos servos e não nossos senhores e nós devemos ter a liberdade de desenvolve-los quando queremos e interrompe-los, também, ao nosso gosto.

Em estados mais doentios, esses devaneios ou fugas da realidade são emancipados da vontade, são impostas ao indivíduo de forma absoluta e tirânica. Parece tratar-se de um indivíduo que despreza a realidade e vive uma realidade nova que lhe foi imposta involuntariamente, da qual não consegue libertar-se.

A própria concepção da realidade pode sofrer alterações nos transtornos psíquicos. Em determinados estados a concepção da realidade pode sofrer alterações de natureza bioquímica, funcional ou anatômica. Outras vezes ainda, estados de natureza exclusivamente psicopatológica também podem contribuir para que a realidade seja alterada. É assim que fatores afetivos, emocionais ou psíquicos podem deturpar o senso de realidade, proporcionando uma concepção do mundo determinada exclusivamente pelas necessidades interiores e não mais pela lógica comum a todos nós.

Ao pensamento que se afasta da realidade morbidamente, ou seja, doentiamente, damos o nome de Pensamento Derreísta em oposição ao Pensamento Realista, atrelado à realidade. Falamos “se afasta morbidamente da realidade” porque esse tipo de pensamento não depende mais do arbítrio que as pessoas normais têm em fantasiar e voltar à realidade voluntariamente. O Pensamento Derreísta devaneia obrigatoriamente, negando ao paciente o entendimento dos limites da fantasia e da realidade.

Nesta questão de pensamentos, como em todas as outras, os extremos são problemáticos, ou seja, não deve prevalecer, com exclusividade, nem o pensamento mágico, nem o lógico. Para aqueles que acreditam ser normal e desejável ter os pensamentos exclusivamente atrelados ao concreto e ao real, lembramos que essa limitação também pode ser patológica. A incapacidade de afastar-se daquilo que é absolutamente concreto, leva o nome de Concretismo, que também é uma alteração da forma do pensamento.

De forma mais prática e didática, podemos considerar o Pensamento Derreísta como sendo uma espécie de Pensamento Mágico, e o Pensamento Realista como sendo o Pensamento Lógico. É absolutamente normal que a pessoa tenha esses dois tipos de pensamentos, simultânea e harmonicamente, valendo-se deles de acordo com suas necessidades adaptativas.

Para resolver as necessidades práticas do cotidiano a pessoa se vale do Pensamento Lógico (realista); calcula dinheiro, planeja seu dia, prioriza atividades, dirige de acordo com as normas, comporta-se com sensatez, lógica e discernimento, etc.

Diante das necessidades interiores os Pensamentos Mágicos são mais lenitivos. Através deles a pessoa faz suas orações, nutre seus desejos e esperanças, aposta na loteria, evita passar debaixo de uma escada, acredita em seus deuses, fala da sorte ou do azar, enfim, devaneia. E normalmente esses devaneios obedecem às normas da cultura em que vivemos, ao menos em boa parte deles.

De modo geral, quanto maiores as angústias, mais se recorrem aos Pensamentos Mágicos. Isso ocorre fisiologicamente nas pessoas normais, porém, diante de situações psíquicas patológicas, a “opção” para o Pensamento Mágico pode se tornar absolutamente impositiva.

Essa espécie de predileção pelo Pensamento Mágico pode se dar em vários graus; desde uma simples crença até o delírio franco, passando pela fé, pelas idéias supervalorizadas e pelo fanatismo. Isso significa que a simples crença pode privilegiar a Mágica sobre a Lógica discretamente, sendo possível sair do mágico para o lógico com facilidade, enquanto no delírio, há um grau maior de submissão da lógica ao mágico, tornando basicamente impossível o retorno voluntário ao Pensamento Lógico.

Então, para saber se a pessoa está totalmente, parcialmente ou ligeiramente submissa aos seus Pensamentos Mágicos, devemos saber se essa pessoa tem ou não delírios. Sabendo, então, serem os delírios os mais graves causadores da soberania do Pensamento Mágico, o problema da psicopatologia será descrever as patologias que originam delírios, conseqüentemente, que causam o domínio absoluto da mágica sobre o lógico.

Nas Esquizofrenias, por exemplo, a pessoa perde totalmente os limites entre o mágico e o lógico, através de seus delírios. De modo geral, qualquer patologia mental capaz de produzir delírios subjuga a lógica, privilegiando morbidamente a mágica.

A Psiquiatria Transcultural se preocupa em saber diferenciar a sugestionabilidade determinada por razões culturais do delírio, ou seja, diferenciar a pessoa que se sente possuída por entidade espiritual durante um culto religioso de um delírio. Durante um culto religioso, a pessoa vivencia um entorno místico, podendo ser sugestionada a aderir a algum tipo de Pensamento Mágico, cujo conteúdo não será totalmente estranho à outras pessoas que comungam a mesma crença ou o mesmo espaço cultural.

Os sentimentos de transe e possessão não podem ser considerados delírios, muito embora possam estar emancipados da realidade lógica. Sabendo que o delírio é monopólio de transtornos emocionais muito sérios, como por exemplo das psicoses, é claro que não podemos atribuir o diagnóstico de delírio a todas pessoas sugestionáveis que se “deixam” possuir em cultos religiosos.

Mas essas pessoas, as possuídas, não estão livres de preencherem os requisitos para as chamadas Idéias Deliróides. Nas Idéias Deliróides as experiências são assimiladas e a imagem do mundo exterior fornecida pela razão é falsificada, de acordo com as necessidades afetivas e com a fragilidade emocional.

O raciocínio que caracteriza a Idéia Deliróide é bastante similar ao do Pensamento Mágico, normal e que todos nós utilizamos em grau muito menor. A Idéia Deliróide é como se tratasse de um Pensamento Mágico mais patológico, porém, compreensível à maioria das pessoas normais.

As Idéias Deliróides aparecem em certas pessoas como tentativas (patológicas) de manipular os problemas e as tensões da vida. Tratam-se de fantasias elaboradas para fornecer aquilo que a vida real nega, entretanto, devido ao seu aspecto patológico, essas fantasias não são compatíveis com uma adaptação social normal.

Uma pessoa com marcante e desmedida ambição para o poder, por exemplo, dependendo da estrutura de sua personalidade, pode apresentar uma Idéia Deliróide acreditando (e fazendo outros acreditarem) ser uma pessoa ungida por Deus, logo com poderes e ascensão sobre os demais. Outro exemplo seria de uma pessoa sexualmente muito ativa que vivesse em uma sociedade muito proibitiva, daria vazão à sua sexualidade acreditando ser possuída por uma entidade espiritual permissiva.

Portanto, a direção e os temas das Idéias Deliróides podem ser determinados pelos problemas e necessidades íntimas do paciente, revelando sempre aspectos significativos dos problemas pessoais. As fontes desses problemas podem ser encontradas freqüentemente em inclinações e impulsos contrariados, esperanças frustradas, sentimentos de inferioridade, inadequações biológicas, qualidades rejeitadas, desejos importunantes, sentimentos de culpa e outras situações que exigem uma defesa contra a angústia.

Uma profunda necessidade de consolo pode ser satisfeita por Idéias Deliróides auto-elogiosas, assim como Idéias Deliróides de grandeza podem refletir uma defesa contra sentimentos de inferioridade.

Para a formação de Idéias Deliróides são necessários alguns elementos favorecedores. Primeiro, uma personalidade prévia vulnerável e problemática, seja por traços de marcante histeria, de extrema sensibilidade afetiva, de paranóia, ou menos comumente, de uma personalidade prejudicada por problemas funcionais cerebrais.

Em segundo, há necessidade de uma situação emocional frágil, problemática e vulnerável. Em terceiro, precisa-se de um ambiente cultural que ofereça o tema e script daquilo que pode (e deve) ser fantasiado.

(Continua...)
para referir:
Ballone GJ, Ortolani, IV  - Transe e Possessão - in. PsiqWeb, Internet, disponível em www.psiqweb.med.br, revisto em 2005.

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