Existem crenças patológicas?
Saber que existe alguma crença alienante e patológica sabemos, mas identifica-la e estabelecer relações entre essa crença patológica com motivos mórbidos internos e particulares de cada um tem sido uma tarefa difícil. Saber que existe sabemos, mas identificar essa crença alienante e patológica, cuja estrutura dependa, além dos motivos mórbidos internos e particulares, também de influências patogênicas exercidas pela cultura, tem sido uma tarefa mais difícil ainda.
A crença, em si, é um ato de consentimento subjetivo para uma hipótese, trata-se de uma decisão psíquica sobre alguma verdade, portanto, crer não é a mesma coisa que saber, é sim, acreditar no saber de outro. A crença, que pode parodiar o que se entende por fé, trata-se da aceitação de uma verdade racionalmente improvável, ou a adesão da pessoa a uma idéia emancipada da inteligência (Tomás de Aquino). Neste sentido a crença religiosa é mesma coisa que a fé, ou seja, é fidelidade.
Primeiramente, talvez, seja o caso de reconhecer existir no arbítrio humano a possibilidade de uma crença desinteressada e livre, de um tipo de pensamento mágico e, ao mesmo tempo, de uma idéia sustentada por uma espécie de “lógica” psicológica (Jung, Adler, Janet), entre aspas porque não é racional, lógica esta capaz de confortar sem, no entanto, alienar.
Esse tipo de crença ou fé é desejável, sadia e fisiológica e são pensamentos mágicos, de natureza religiosa ou não. Jogar na loteria, por exemplo, pode ser uma atitude determinada exatamente por uma crença desse tipo, que menospreza totalmente as possibilidades estatísticas racionais de investimento econômico.
Quando esse tipo de crença (do exemplo acima) é impregnado de um sentimento religioso a pessoa atribui um aspecto místico ao ato de jogar na loteria, por exemplo; peço a Deus para ganhar na loteria. Posso estabelecer com Ele certas barganhas, promessas, agradecimentos, atitudes litúrgicas, enfim, posso sistematizar métodos que favoreçam esse canal de comunicação Deus-Eu. “Sei que vou curar-me do câncer, pois tenho fé em Deus e, se isso acontecer, prometo nunca mais comer chocolate”.
Quando existe sistematização no exercício das crenças, ou seja, um método, uma liturgia ou um ritual nas relações transcendentais entre a pessoa e Deus, estará sendo exercida a religiosidade e, quando esse ritual é compartilhado por um grupo de pessoas, estará se exercendo uma religião.
O exercício do pensamento mágico, da religiosidade e, conseqüentemente, da religião é um atributo da pessoa livre; política e psiquicamente. Psiquicamente, a pessoa livre e sadia recorre, voluntariamente, arbitrariamente e espontaneamente aos pensamentos mágicos, sejam eles simples devaneios, fantasias eróticas, de natureza metafísica, mística, etc.
Psiquicamente, a pessoa livre e sadia também é portadora de uma capacidade voluntária, arbitrária e espontânea de parar com esses pensamentos mágicos e voltar, prontamente, à realidade ou ao pensamento lógico.
A pessoa psiquicamente sadia sabe, exatamente, onde começa o pensamento lógico e termina o pensamento mágico. Na doença psíquica, entretanto, fica seriamente comprometida essa autonomia, sendo difícil e/ou impossível ao paciente fazer com que seu pensamento transite entre o mágico e o lógico e vice-versa.
O pensamento mágico ou a crença na doença psíquica adquire características de delírio. Como vimos em Alterações do Pensamento (do Conteúdo do Pensamento) , segundo Kraepelin, delírios seriam “idéias morbidamente falseadas que não são acessíveis à correção por meio do argumento lógico”. Bleuler, por sua vez dizia que “idéias delirantes são representações inexatas que se formaram não por uma causal insuficiência da lógica, mas por uma necessidade interior”. Jaspers, o autor mais reconhecido internacionalmente em relação ao conceito de delírio, dizia “tratar-se de uma convicção subjetivamente irremovível e uma crença absolutamente inabalável, caracterizada por absoluta incompreensibilidade psicológica para o indivíduo normal, bem como, por impossibilidade de sujeitar-se a quaisquer correções, seja através da experiência ou da argumentação lógica”.
Esse assunto é por demais complicado aos olhos da psicopatologia. A grande dificuldade da psicopatologia, entretanto, não está na caracterização de crenças ou pensamentos mágicos como se tratassem de delírios, pois os conceitos se equivalem e, em tese, poderíamos considerar mórbida a crença que fosse irremovível e que se mantivesse em total desprezo para com o pensamento lógico. Mas nem isso a psicopatologia pode, pois, culturalmente, a crença que se pretende ser fruto da fé, deve ser sempre irremovível e inabalável, senão deixaria de ser fé.
Um outro agravante curioso e incômodo é que, supondo existir alguma crença patológica, esta faria parte de alguma determinada patologia, seria um sintoma de um determinado quadro psiquiátrico. Porém, podemos constatar também que nem todas as pessoas que acreditam em alguma coisa fantástica e mágica sejam loucas e, finalmente, para complicar mais ainda, podemos constatar também que nem toda crença do louco é, necessariamente, uma coisa patológica e absurda.
Diante dessas e outras variáveis, seria mais prudente considerar que os critérios para que determinada crença pudesse ser considerada patológica, fossem os mesmos critérios necessários para o diagnóstico psiquiátrico, ou seja, o critério estatístico, valorativo e intuitivo.
O Critério Estatístico considera o numericamente comum, em determinada época e sociedade, como por exemplo a idiossincrasia de nossa cultura na crença em entidades do candomblé, portanto, algo estatisticamente normal ou aceitável em nosso meio. Acreditar nos preceitos da Santa Inquisição, da mesma forma, foi estatisticamente normal para a época em que se deu o evento.
Fenômenos como o encosto, a possessão pelo demônio ou por um espírito, muitas vezes são sintomas de transtornos emocionais mas, no contexto religioso do Brasil, a possessão e o transe são comportamentos aceitos culturalmente, e raramente são vistos como sintomas de distúrbio mental. Muito pelo contrário. Situações de transe que poderiam ser consideradas doentias em algumas sociedades, podem ser consideradas dons, desejáveis e meritosos.
O Critério Valorativo, por sua vez, avalia uma espécie de autenticidade necessária para que tal crença não ocasione sofrimento; nem ao crente, nem aos demais. Havendo qualquer tipo de sofrimento, consternação, constrangimento, ou sentimento desagradável determinado pela crença, estará evidente seu caráter mórbido, poderá tratar-se de uma preocupação religiosa mórbida ou patológica. Em psiquiatria o sofrimento não deve ser monopólio do paciente, ou seja, havendo sofrimento nos demais, já podemos considerar o fenômeno mórbido.
O Critério Intuitivo é aquele deduzido da experiência anterior acerca do normal e do não-normal. Sabe-se, intuitivamente, quando algum pensamento, gesto, atitude e, em nosso caso, alguma crença, foge aos padrões do que se espera como normal. Vamos tomar como exemplo a crença de um cientista em uma partícula subatômica “quaker”, cuja existência não se confirma por constatação real mas sim, por dedução matemática e física.
Vamos tomar como outro exemplo, a crença em uma entidade etérea, o “sdruvs”, encarregada em cuidar do pensamento da humanidade, distribuindo entre os seres humanos as inspirações para os diversos tipos de pensamento, seres que inspirariam a arte, a pintura, a poesia, a magia... Independentemente da existência real ou não do tal “quaker” ou do “sdruvs”, qual dos dois tipos de crença nos parece, intuitivamente, mais provável?
Os três critérios supracitados são necessários para considerar a crença não-normal, ou mesmo patológica. Através do critério estatístico e intuitivo podemos considerar uma crença não-normal e através do valorativo, atestar se esse não-normal seria também patológico.
Há pessoas emocionalmente propícias ao desenvolvimento de crenças patológicas, sejam essas crenças elaboradas por essas próprias pessoas como uma necessidade interior de alívio para angústias e desesperos, sejam as crenças induzidas por outras pessoas.
Cristina Pozzi Redko é uma antropóloga que publicou interessante trabalho sobre Cultos de Aflição, entendendo-se esse tipo de culto como aquele para o qual se dirigem pessoas aflitas e em busca da resolução de problemas concretos do cotidiano. Essas pessoas são mais propensas e sujeitas às crenças patogênicas. Nestes Cultos de Aflição a religiosidade é usada para resolver problemas que dizem respeito a doenças, dificuldades amorosas e financeiras e problemas familiares (Alguns Idiomas Religiosos de Aflição no Brasil - Cristina Pozzi Redko ) .
(Continua...)
para referir:
Ballone GJ, Ortolani, IV - Transe e Possessão - in. PsiqWeb, Internet, disponível em www.psiqweb.med.br, revisto em 2005.
Ballone GJ, Ortolani, IV - Transe e Possessão - in. PsiqWeb, Internet, disponível em www.psiqweb.med.br, revisto em 2005.
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